segunda-feira, 20 de julho de 2009

Homenagem...



" Nasci no campo, onde se cruzavam os cheiros de flor
Do limoeiro

Com o de hortelã e o do estrume. Brinquei

Por entre o milho, queimei em fogueiras o rosmaninho,

Persegui lagartixas, cobras e ouriços, capturei e destruí
Escaravelhos,

Defendi as carochas, roubei ninhos com ovos e pássaros
Implumes,

Colhi cachos ainda verdes, desesperei pelo amadurecimento

Dos figos, das romãs e dos alperces,

Tingi-me com amoras, fui irmão das abelhas, discuti com o
Vento

E mais do que a erva e as árvores aproveitei-me da chuva.

Agora moro num quarto andar e tenho um automóvel tão

Sólido como a minha infelicidade,

Viajo às vezes entre as árvores, e colinas com árvores e
Planícies com árvores

Mas está tudo longe, fora do alcance, fugindo de mim

Rapidamente, em sentido contrário,

Com a mesma rapidez com que a infância me fugiu.

Sou hoje um cidadão da pedra e do betão. Os meus pés não

Pisam já o alecrim,

Os meus olhos não se habituam já ao escuro da noite para

Observar o voo dos morcegos,

Guardo uma ideia vaga de como era um arado, tenho
Saudades

De ver o meu pai descalço a regar morangos e abóboras.

O piar dos tentilhões e dos picanços foi substituído pelo
Ruído do tráfego,

O desajeitado voar das borboletas parece-me às vezes vê-lo
Nos papéis

Que o vento levanta do chão, levando-os daqui para acolá,

E a minha vida é vivida de forma a comemorar o dia disto
E o dia daquilo

Sem comemorar nunca o dia em que começa a primavera.

Bom dia!, diz-me o cliente. Bom dia!, diz-me o fornecedor.

Bom dia!, digo eu, sem dizer nada. "



in:Vou-me Embora de Mim - Joaquim Pessoa



2 comentários:

Anónimo disse...

O teu Joaquim Pessoa!!!
Sempre...

Feiticeira disse...

Admiro o seu percurso como profissional e também como poeta... e meu conterrâneo...