quinta-feira, 30 de julho de 2009

" Saudade"




" Não é um vício, não, é uma vingança.

Acontece quando acordo a meio da noite e estico os braços à procura e não sei que estou só.

A cama é grande e só do meu lado está desfeita.

Acordo à procura do corpo que faz falta e só tenho o meu que está a mais.


Fecho os olhos, como se já não estivessem fechados, e o que está dentro de mim é uma ânsia. Então chegam imagens de um corpo antes de saber que é o dele.

Um corpo não, pedaços de um corpo, pequenas alucinações.


Duas mãos começam a agarrar-me as ancas e uma boca a bafejar-me a cara.

É ele que fala.

Ouço dizer-me as coisas que me diz e calo-me.

Ouço-o chamar os nomes que me chamam e eu vou.

Começo a desfazer-me para que me faça.

O corpo que eu toco não é de ninguém.

Quando não basta, repete, quando não basta repito.

E depois há uma coisa que vem de muito longe e não quer acabar de vir.

Vem a mim e eu não consigo ir a ela.

Estou comigo.

Não é um corpo, não.

É um fugir.

Um barulho.

Qualquer coisa assim que vem, que agarra e passa.

Um bicho.

Não é um corpo não, porque os não há.

Às vezes ouço-me gritar, ou julgar que grito e depois fico quieta como se corresse perigo.

Começo a pensar nele e acabo a pensar em mim,

os cabelos desfeitos,

uma ânsia sem fim. "




In: Vida de Adulto - Pedro Paixão